domingo, 17 de outubro de 2010

O último homem - o elogio que faltou

Foi o último homem a partir daquela terra, da sua geração. Deixou-lhe marcas físicas, desde pequenas obras à vista de todos, até pequenas ou médias obras que ficaram marcadas em quase todas as casas daquela terra; em algumas até mais do que uma marca. Costumava pegar no segundo neto que nasceu e leva-lo para essas casas, onde num quase silêncio ia ensinando. O neto gostava de o seguir, de o ver trabalhar, naquele ramo que ele dominava: fazer de tudo um pouco, aquilo que era preciso ser feito. Assim sendo, depois de fechada a fábrica onde trabalhou durante muitos anos, onde conheceu a sua esposa, começou a dedicar-se a ganhar a vida nesses pequenos trabalhos. Era a sua verdadeira arte. E em vários sítios daquela terra, assim como podemos observar naquele portão grande verde, encontramos várias vezes as iniciais AH. Agora, tão depressa, mais ninguém poderá escreve-las.
É curioso a falta que as pessoas fazem.
O seu primeiro neto respeitava-o. Mas na altura, assim como a maioria da raça humana, não lhe deu o devido valor.
É triste a clareza que a morte trás às nossas vidas. Já repararam?
Vivia naquela terra há tanto tempo, viveu tantas coisas, tantas pessoas, para depois, sem "razão" (desse mundo que me revolta e que a muitos leva à loucura), morrer.
Talvez ele saiba, espero que sim, seja lá onde estiver, que todas as semanas entra nos sonhos do neto.
E que até hoje, de algumas mortes que já passaram na sua vida, foi a dele que mais o marcou.

A vida, quando para nós parece um merda, trás com ela várias ideias que devem ser compridas...uma delas é parecer que fizemos tão pouco em vida, e que fazemos tanto depois de mortos.

E perguntamos todos os dias, será melhor o esquecimento ou a dor da lembrança?
Porque é que pessoas que nunca fizeram mal a ninguém morrem supostamente mais cedo?

Como qualquer ser humano, é normal mesmo na crença colocar em causa todos estes acontecimentos. Alguns procuram uma resposta. Eu nunca procurei resposta a isto, porque a raiva que me vai no cérebro é só uma, e nenhuma explicação, mesmo a mais honesta, mesmo a mais serena, me vai fazer sentir outra coisa qualquer.

Eras Touro, e como qualquer Touro que obedece às leis dos astros, eras teimoso. Muito. Talvez nisso tenha saído a ti.
Podia-me arrepender de muitas coisas. Mas só me arrependo daquilo que me lembro. Tudo fizemos para te ajudar a suportar melhor o que te restava da vida. Os que eram do teu sangue, e mesmo aqueles que não eram.
De todas as doenças que corroem este mundo, de todas elas, só uma está com o ser humano desde o seu nascimento. E toda esta família a teme, pois está no seu sangue. Se pudéssemos matar o cancro.
Esse estupor, mesmo depois de arrancando de um corpo, é como se ainda lá estivesse. A fazer-se sentir. A consumir.

Ninguém escolhe morrer. Mas tu morreste. Deixaste para trás um arrecadação cheia de ferramentas do teu trabalho, de materiais de construção. Agora, tudo está diferente. E a tua mota Casal, aquela que te guiou durante toda a tua vida, foi vendida.
Restam agora fotografias vagas. Tu a pegar em cada neto. Nas festas do Natal ou Ano Novo. Mas mesmo nessas, a doença também já está presente.
No teu último mês de vida nunca tivemos a coragem nem o amor de te irmos ver. E talvez seja isso o que me magoa mais. Se fosse hoje nada seria como foi. Mas não é. Existe o passado que ainda pode ser corrigido, e aquele que tem de viver connosco para sempre, sem correcção possível.

Tudo o que resta agora é sentir a tua falta, e fazer-te este elogio. Pois enquanto eu puder, lembrarei-me de ti, lembrarei os outros de ti. Fazes-me mais falta do que alguma vez pensei, e as saudades que sinto são muitas.

Em Lisboa, no IPO, faleceu o meu avô. Pai de dois filhos, marido de uma só mulher, avô de três rapazes e de uma rapariga. O último sobrevivente homem de toda uma aldeia chamada Sapateira, onde agora só agora residem apenas viúvas, nesse fundo do lugar, dessa vila chamada Castanheira de Pêra.

Foi uma honra estar na tua família, fazer parte de ti.

Obrigado.

Dedicado a Alfredo Henriques.

3 comentários:

Sofia disse...

Força. Posso imaginar o que sentes nesta altura e sei que é um terramoto muito grande cá dentro. Mas o que escreveste é uma linda homenagem, a melhor de todas. Porque o vento nunca levará as palavras... E as memórias também ficam. :) ********

Diogo Garcia disse...

Ty Sofia =) . Infelizmente ou felizmente este texto deveria ter sete anos. Mas mais vale tarde do que nunca. *

João Henriques disse...

eu deitei uma lágrima a ler o texto . :S
Sentimento mútuo primo