segunda-feira, 13 de outubro de 2008

E os deuses

Zeus pede cinco tempos e vai até à varanda. Senta-se e suspira. Limpa o suor da testa com o braço esquerdo. Acende um cigarro com a ponta do dedo e deixa-se fumar lentamente. Ainda cansado e com o coração em altos batimentos arranja forças para gritar pelo seu filho Apolo. Apolo vem correndo mais depressa do que o costume, pois trata-se do seu pai.
- Chamou?
- Chamei. Faz-me um favor, diz à minha esposa que tive uma reunião que vai prolongar o meu atraso.
- Com certeza pai… Hoje está com um ar mais cansado do que o normal, está bem?
- Ela hoje está insaciável.
Apolo correu então ainda mais depressa em direcção à actual esposa de Zeus, com uma nova verdade em forma de mensagem.
- Devo estar a ficar mesmo velho. Suspirou o velho Zeus.
Volta a entrar no quarto e ei-la ainda mais bela do que à cinco tempos atrás. Desta vez tinha um lençol branco que serpenteava todo o corpo, cuidadosamente por acaso tapando o ventre e os seios.
“Basta ser mulher, que homem ou deus cai na loucura. Nem só da alma podemos nós viver”, pensou. Estava agora loira, outrora morena e chegou mesmo a experimentar um tom mais ruivo. Era Vénus. Como sempre sublime, bela, intocável a qualquer um, desejando ser tocada por todos.
- Não me queres amar mais hoje?, perguntou Vénus num tom cedente de mais amor, num misto de brutalidade e melaço, enquanto se movia de mil maneiras diferentes, daquelas que levam um homem ou deus a uma loucura injustificada racionalmente. Amar… Estamos pois diante de uma palavra, com significados vários. “A carne é fraca e de muita carne vive o homem e o deus”, pensou Zeus.
- A minha esposa espera-me…
- Pois bem… Deitou-se então e apoiou a cabeça nas mãos formando uma rampa perfeita com as suas costas, num declive divinal. Que perfeição, o cabelo preso no lado direito dava a mostrar a sua cara, o seu pescoço, cada linha sua, os ombros e os belos seios que pendiam relativamente no ar apenas agarrados por aquele magnifico corpo. “Nem os homens nem eu!”
…Porém.

Zeus tinha pedido cinco tempos na varanda. Vénus olhava-o através das cortinas transparentes. “Tanta sabedoria e experiência num corpo tão belo.” Olhava-o com aquele amor de que se apaixona, de quem à primeira vista só procura atingir os olhos e a alma. Mas depressa mordeu o lábio e desejou toda aquela força possante dele nela. Afinal era apenas um corpo, talvez o melhor, mas apenas um corpo, que mais do que qualquer outro estaria ali a fazer o impossível para a fazer ter prazer. “A carne é fraca e é a carne que o homem ou o deus deseja, que o faz trair o espírito.”
Os seus cabelos brancos caiam-lhe harmoniosamente na testa. Um pescoço forte ligava o bonito rosto aos fortes ombros, donos de braços esculpidos. Todo ele ardia harmonia. Vénus gostava de harmonia e adorava queimar-se.
Zeus entrou no quarto. As velas iluminavam apenas uma das suas faces, como se exprimisse também a sua alma; a fome carnal ou uma presença crescente de espírito.

Há várias coisas que passam pela cabeça de um homem ou deus nestes momentos. Todas elas apesar de lógicas, vêem sempre desordenadas. Por um lado: vive a vida, aproveita o momento, goza o sabor doce da traição. Por outro lado: se amas quem amas para quê fazeres isso? Se amas quem desejas e desejas quem amas, para quê?
Zeus sorriu a Vénus e saiu do quarto. Reflectiu no caminho para casa. “É verdade que desejo Vénus, mas não a amo e desejo mais quem amo. É essa talvez a diferença entre paixão e amor. A paixão pode ser avassaladora, tão forte que parece por vezes derrubar o amor. Mas não. O amor está sempre lá. Cresce, esconde-se das intempéries e se for verdadeiro volta ainda mais forte.“
Errar é humano e divino, cabe pois ao homem ou deus aprender com o erro e não voltar a errar. E Zeus foi assobiando felicidade no caminho para casa.