terça-feira, 23 de outubro de 2012

Três pontos finais


- Sim...Surpreende-me. A voz soou desafiante, mas sem grande esperança.
O homem baixou os olhos de um céu que aparentemente não era dele, para voltar a caminhar na sua terra.


- Ai, a vida do mundo. Suspiraram.

O senhor começou por se queixar do estado que o país atravessava, e apesar da idade experiente, mal sabia que as coisas, em poucos meses, iriam piorar imenso. Mas a angústica não se devia aos roubos, aos enganos. A televisão era a sua única companhia e queriam tirar-lhe. Agora só sobrava a televisão, e até isso...o mundo lhe queria tirar. Começou a chorar, há mais de dois anos, ia todos os dias visitar a sua esposa. Estava a dormir num profundo coma. Era o amor da vida dele, e ali estava, como que a dormir um sono honesto, como se se estivesse a preparar para o sonho maior que é ausência da vida. Chorou, e chorou um pouco mais, chorou abertamente como se mais ninguém, tirando o alguém daquele momento, o quisesse ouvir. Não tinha mais ninguém, e a única coisa que o conseguia distrair da dor diária, estava-lhe a ser retirada...

A senhora falava por cima de uma tristeza que não era possível disfarçar. Aos poucos as lágrimas esculpiam a voz. Trabalhou tanto, ajudou tantos, e agora, tantos se tinham esquecido dela. Ainda não passava fome, mas a vida aos olhos dos inocentes é sempre pesada, e a inocência traz com ela uma verdade honesta. Ia sobrevivendo, mas onde iria tudo isto acabar? Pagava sempre as suas pequenas dívidas, que criava nos bens essenciais. Disse que ia pagando aos poucos, sempre aos poucos, e que apesar de toda esta pobreza, deste perder constante da sua dignidade, acabava sempre por pagar, custasse o que custasse. Não era mentirosa, nem enganava. E se todos fossem como ela, nada disto estaria assim.

O Homem sentou-se à porta do Banco. Existem três grandes locais onde podia pedir esmola, facto que aprendeu em pouco tempo: à porta de supermercados, bancos e igrejas. Os primeiros dias foram difíceis. Rezam as lendas do senso comum, que os dias primeiros são os piores...mas não, estão todos enganados. Depois do choque inicial, chega o peso da verdade. Da injustiça, de olhos vendados por mãos humanas; da verdadeira fome, não daquela que se tem quando se passa à frente de uma refeição ou quando não se teve tempo para comer tudo o que estava no prato; do cheiro e da sujidade que um corpo e as vestes que o cobrem são capazes de acumular...do sentimento de repulsa e ódio que conseguimos ter para connosco e para com o mundo que nos rodeia.

A mulher estava em pé, parada num parque de estacionamento. Quem observava não poderia dizer com certeza se estaria à espera de alguém, ou se o seu carro estaria ali perto. Devagar tirou um objecto do bolso, capaz de memorizar imagens. Afastou-se um pouco da parede, que mais parecia um muro, e apontou o objecto. Memorizou a imagem e enviou-a para um familiar, amigo ou para a sua outra parte. É tão raro as mulheres terem estas originalidades romanticas, não é? Pensou. Hoje não, não comigo. Sorriu e seguiu a sua vida. Nas pinturas escritas que estavam na parede, que mais parecia um muro, podia ler-se, entre outras coisas: Amo-te, em letras grossas e vermelhas.

O casal não estava vestido formalmente, apesar de ter chegado do trabalho à pouco mais de vinte minutos. Eram 19h25. Podiam ter ficado a preencher mais alguns minutos de tempo vazio nos seus locais de trabalho, mas não. Podiam ter-se estendido no sofá, mas não. Podiam ter trazido trabalho para casa, mas não, pelo menos para já. O casal estava vestido o mais simples possível, talvez até de calções ou calças de fato de treino, e de t-shirt. No campo de basquetebol, jogavam com os seus dois filhos, e aproveitam desta forma, da melhor forma, momentos que não permitiam que ninguém lhes roubasse, conscientes do seu valor impossível de quantificar.


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